Este é o conto que foi selecionado entre os 7 melhores pelo Concurso Literário Yoshio Takemoto (Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil [São Paulo]) e foi publicado na revista da citada instituição.
Amigo mais que imaginário
Eram só os fundos de uma sapataria no bairro pobre de
Munique, mas o suficiente pedaço do céu para a família que ali vivia. No
pequeno quintal, cabiam exércitos de soldados de chumbo e vastos campos de
batalha, com lagos, montes, florestas que eram os canteiros de margaridas.
Ao contrário das lutas sem fim que eram travadas às
tardes naquele pedaço de terreno, os habitantes daquela terra de faz de conta,
em plena Alemanha nazista, eram felizes de mais para nos preocuparmos com guerra.
A vida era humilde, mas não faltava comida nem amor.
Adolf orgulhava-se do que para ele não era a pequena,
mas a loja do papai. Não cansava de repetir na escola, para todos nós, que seu
pai vendia os melhores sapatos germânicos, pois as pessoas saiam de lá calçadas
em algo mais que sapatos. Essa afirmação vinha do jantar. Quando todos
sentávamos à mesa para comer e o pai relatava as experiências do dia. Como luteranos
convictos, todos naquela casa críamos que nos relacionarmos com outra pessoa
era uma oportunidade que Deus criava para que os que conheciam a fonte da vida,
compartilhassem dela, assim, todos que cruzavam os portais da loja em busca de
um sapato, saiam calçados com a perspectiva de um novo caminho.
A vida parecia perfeita, até o mundo desabar com tudo
sobre os Müller. Bárbara Müller caiu de cama, com uma doença rara, mal tinha
forças para abrir os olhos. Embora as irmãs do estudo bíblico revezassem-se nas
tarefas da casa, o Sr. Ernest não abria mais sua loja e ficava dia e noite junto
da esposa. No fundo, seu coração sabia que não teria muito tempo ao lado dela.
Adolf e eu íamos à escola e às tardes, às vezes, brincávamos de estratégia, mas
não tinha mais graça.
Depois de alguns meses Deus chamou Bárbara. Foi assim
que Ernest disse a seu filho único na cozinha, entregando uma caneca com chá.
Adolf ficou triste por a mãe ter mudado de endereço sozinha e, também, como
faria se tivesse um pesadelo à noite, ou pra quem contaria que tirara 10 em
Matemática? Quem estaria em casa fitando pela janela enquanto brincávamos no
quintal? Parece egoísmo, mas é assim que as crianças sentem saudades. Tentamos
explicar com questões práticas o que se passa no campo dos sentimentos, o
verdadeiro campo de batalhas. Um dia poderíamos aprender a sentir as coisas de
um jeito diferente. Apesar de tudo, nós dois sabíamos que morar com Deus era a
melhor opção e, assim, ele não ficou desesperado.
Porém, para Ernest a tristeza foi muito mais forte do
que qualquer outra, pois ele era adulto e, além do mais, a tristeza destaca-se
mais em pessoas radiantes. Como as margaridas que murcharam no jardim, ele
passava a maior parte do tempo cabisbaixo e sem falar. Só voltou a abrir a loja
quando a comida foi embora dos armários.
Estávamos em 1932, a Grande Depressão era a maior realidade
na vida de Ernest Müller. Quase não efetuava vendas e por isso falava menos
ainda, passava o dia todo atrás do balcão, agora empoeirado e cor de betume,
olhos no vazio. Esquecia-se muitas vezes que o dia havia terminado e que era
hora de dormir. Adolf e eu brincávamos e nos virávamos na cozinha, que cada dia
ficava maior.
Quanto mais o tempo passava mais difícil as coisas
tornavam-se. Alguns anos passaram-se, Adolf e eu entramos para a Juventude
Hitlerista e o pai encontrava alento na caridade. Como não havia muito o que
compartilhar, então não havia muito alento também. No entanto, sua proximidade
com pessoas suspeitas, denominadas judeus, rendiam muito. Rendiam desconfiança
do Partido Nazista. Nossa casa fora revirada algumas vezes por conta disso. O
pai, sempre irredutível, parecia querer nos dizer que aquele que perde sua vida
na verdade a ganha. Hoje entendo o porquê de Adolf frequentar a Juventude
Hitlerista, era mais por proteção pessoal do que por ideologia.
Contudo, numa das revistas algo diferente aconteceu,
fomos impedidos de assistir à ação dos camisas–pardas, do lado de fora só
escutávamos os poucos móveis e objetos serem revirados. Não desconfiamos que era
o pretexto para se plantar provas falsas na casa. Um pedaço de papel, ao qual
os soldados chamavam documento, comprovava o parentesco dos Müller com os
judeus. Um falso testamento. Nós só conhecíamos o Novo e o Antigo.
A herança não tardou a chegar, uma semana depois. Nova
revista. Duas folhas malditas eram prova suficiente para sermos presos. Nosso
crime: sermos judeus. Espere aí! Não éramos judeus.
Não importava, fomos arrancados do que sobrara de um
lar feliz e fomos transportados ao inferno do Führer, mas não podia dizer isso a Adolf. Depois de separado do
pai, eu deveria dar-lhe segurança.
Então virei adulto, ainda que, em corpo de criança. Isso
não é estranho para um amigo imaginário. A cabeça de Adolf estava ocupada de
mais com seus medos para reparar na minha mudança. Aliás, sua cabeça foi o
primeiro alvo dos nazistas. A cortina negra de cabelos que cobriam sua testa,
que a sua mamãe, com carinho, chamava de franjinha linda, foi tosquiada, assim
como os cabelos de todo o rebanho, ou melhor, todas as ovelhas, não, quero
dizer todos os judeus.
Em seguida, todos, de forma constrangedora, foram
obrigados a tirarem suas roupas. O fato de só homens estarem ali, não amenizou
a vergonha, nem a humilhação. Muitos gritos, muitas chicotadas cortando paredes
e corpos obrigaram todos a se despirem, entregarem suas roupas. Nunca houve um
outubro tão gelado na Alemanha, no entanto os corpos tremiam também por outras
razões. Logo uma mangueira enorme começou a atirar jatos de água na massa
humana que se formou no canto do galpão. A pele anestesiada pelo inverno
impediu que as rajadas de água fria doessem muito nos corpos, mas não impediu
que doessem na alma.
Depois do banho e uma pulverizada de um pó branco,
foram entregues roupas mais largas que os corpos, suas estampas lembravam grades.
E fomos todos levados para um imenso quarto, com muitas camas duras e frias.
Algumas pareciam caixas onde cada pessoa se recolhia. Foi só no silêncio que se
instaurou após todos estarem aparentemente acomodados, que os olhos de Adolf se
entregaram às lágrimas que aprisionou durante todo o dia. Chorava baixinho e eu
o abraçava sem dizer palavra, pois eu também tinha medo, mas não tinha o luxo
de derramar lágrimas.
Com pena de Adolf, um senhor da cama de cima, desceu na
tentativa de consolá-lo, não em que ele estivesse em situação melhor, mas como
era adulto se sentiu obrigado a fazê-lo. Tentou algumas palavras, mas ao fim,
como eu, só o abraçou. Há certos momentos que a pele diz palavras mais sábias
que quaisquer línguas. Era uma pena que eu não podia receber um abraço que me
desse segurança também, pois eu sequer podia ser visto pelos adultos.
Acho que ninguém dormiu ali naquela noite, por isso a
manhã demorou a chegar. Na verdade só sabíamos que era dia, por ser menos
escuro que a noite, pois ali tudo eram trevas. Não demoraram a nos colocar para
trabalhar: queriam a construção de um novo alojamento. A fome tornava essa
tarefa mais difícil, por isso eu deveria agradecer por não senti-la. Todos
estavam sem forças, mas o medo da violência dos soldados fazia a pouca energia
que sobrava trabalhar o dia todo. Marx era uma homem alto, magro, nariz pontudo.
Era simpático e demonstrava pena e cuidado com Adolf. Algumas vezes contou bonitas
histórias sobre o povo de Israel até Adolf dormir. Ora eram aventuras no Egito,
ora roupas mágicas que nunca estragavam, ora era pão que descia fresquinho do
céu.
Marx sempre dizia que quando construíssemos o novo
alojamento seriamos soltos e voltaríamos para a Terra Prometida, acho que esse
era o nome de sua cidade. Isso diminuía as perguntas de Adolf sobre o pai e
também fazia com que trabalhasse mais na obra. Eu também acreditava nisso e
encorajava meu amigo a se esforçar mais. Durante algumas vezes Adolf reclamou
comigo sobre o porquê de meu trabalho carregando blocos não aumentar sua pilha.
Acho que a dureza daquele lugar estava esmagando seu ingênuo coração. Temi que
deixasse de me ver. Contudo, no seu
subconsciente eu era a sua versão de segurança. Na sua vida se teve momento que
estive ao seu lado, era na hora de brincar ou na hora do perigo. Esse era um
desses momentos.
Quando o telhado da casa do Führer estivesse terminado, seríamos libertos. A vontade de sair
correndo com os braços abertos até nossa casa era nosso sonho de pássaro. Não
sabíamos que o sonho era a última coisa que possuíamos. Só comecei a entender
tudo quando o gás foi espalhando-se na câmara. No entanto, fiquei firme, fi-lo
acreditar que estávamos todos ali, naquela sala pequena, para outro banho. Marx
havia ficado de fora, com outro grupo e, apesar do olhar no chão, não me
desmentiu em nenhum gesto.
Faltava pouco para a liberdade, mas não falo de
liberdade das grades ou das cercas, mas sim da liberdade da alma. A sua prisão
é o corpo, contudo um dia o corpo e a alma se cansam de viver juntos e separam-se.
Para Adolf foi a alma que quis romper com o corpo, ainda muito jovem para
desejar o mesmo. À medida que devagarzinho ela ia perdendo os sentidos e deixando
o físico, eu fazia força para ainda não desaparecer, queria estar com ele até o
momento final, queria motivá-lo a não desistir, todavia minhas últimas palavras
foram: você está livre, meu amigo!
Os olhos fecharam se para sempre. Eu desapareci. Adolf
jamais precisaria de mim novamente.